quarta-feira, 13 de junho de 2012

Novas criaturas surgem da terra, com as narinas mordiscando o ar,
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações,   
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.



Derek Walcott
[Trad. ID]

quarta-feira, 6 de junho de 2012

FRUTOS SECRETOS

Emanuel Jorge Botelho, Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano), Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011; Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo, Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011.


Emanuel Jorge Botelho é, em boa parte por deliberação própria e respeitável, um «poeta invisível». Há vários anos que a maioria das suas publicações têm tiragens limitadíssimas, sendo muitas delas destinadas exclusivamente a ofertas. Ainda assim, convém lembrar que, na década de oitenta, o autor publicou vários livros em editoras de prestígio, como a & etc. ou a Frenesi, o que torna menos compreensível a ausência deste poeta na pretensa e pretensiosa antologia «totalitária» intitulada Poemas Portugueses (Porto, Porto Editora, 2010). Digamos, para abreviar, que Emanuel Jorge Botelho está em boa companhia, pois também não figuram, nessa antologia que supostamente nos oferece o século XX português na íntegra, os nomes de Emanuel Félix, António Barahona ou José António Almeida.
Em 2011, Emanuel Jorge Botelho publicou duas plaquetes, correspondendo cada uma delas a um único poema. São ambas edições fora do mercado, mas isso não constitui motivo para que sejam criticamente ignoradas por quem lhes teve acesso. Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano) tem, desde logo, a particularidade de a dedicatória ser parte integrante do título. E, para quem não saiba, Urbano tem sido um assíduo companheiro do poeta, em livros tão graficamente irrepreensíveis como Ruídos da Luz (2007), As Flores e as Cinzas (2009) ou Antero de Quental, a Vida e uma Manhã (2010). Mas, aspecto ainda mais relevante, a leitura de Vigílias tem tudo a ganhar se conhecermos a obra plástica de Urbano, com a qual estes versos exemplarmente dialogam. É de assinalar, aliás, que cinco das sete estrofes deste poema são interrogações, que de modo nítido e conciso nos reenviam para o universo artístico de Urbano: «a quantas árvores / deste o nome da terra? // quantas vezes a cor foi, / na tua mão, / a prece lavada / do silêncio do mundo?». Simultaneamente, este belíssimo poema diz-nos muito acerca da poética de quem o escreve, assente, nos seus melhores momentos, nessa obstinação de esculpir, longe do ruído, uma «prece lavada» ou um «segredo branco». Tratando-se de um poema de amizade e homenagem, cuja capa consiste num desenho isolado de Urbano, Vigílias é também um pequeno desdobrável em que a memória das coisas e dos seres se dissipa rumo ao intemporal (ou à «hora de Deus», como sugere a epígrafe de Rilke) que caracteriza, afinal, a grande poesia: «que idade tinhas / quando a primeira árvore / te disse para subires?». Assim, precisamente, termina este breve poema – um dos textos mais marcantes que o ano de 2011 me deu a conhecer.

Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo é, por sua vez, um poema dedicado ao pai do poeta, José Maria Botelho (1923-1999). Mas logo percebemos que este luto distanciado – se é que, na morte de um pai, pode alguma vez existir distância – recusa o caminho fácil da grandiloquência ou do pranto derramado. Em vez disso, e lembrando sem dívidas um tom caro ao também açoriano Vitorino Nemésio, as primeiras palavras são de um coloquialismo desarmante: «mais dia, menos dia, José, / apareço por aí, / levado, à boleia, pelo alazão da morte.». A prosódia – seca, contida, mas veemente – é aqui sabiamente cinzelada de estrofe em estrofe, num ritmo tão lírico quanto epistolar: «guarda-me um lugar de alma / a dois palmos da tua mão, / por causa do gume da noite / ou do silvo de cada manhã. // e deixa dormir o meu silêncio / com a face pousada no teu ombro, / enquanto, baixinho, a tua voz / chama pelo nome cada lágrima.». A termos de fazer uma comparação musical, dir-se-ia que esta tensão poética, forte e enxuta, mais depressa se avizinha da rígida introspecção de um Sainte-Colombe do que dos sobressaltos românticos ou da solenidade barroca de Lully e Haendel. A única – e última, aqui – exclamação é sabiamente guardada para o verso final: «boa noite, meu pai!». Pouco mais, entre trevas, se pode dizer a um morto que em nós se tornou imenso.


- Manuel de Freitas
in Cão Celeste, n.º1

sábado, 2 de junho de 2012

AO CREPÚSCULO

Ao atravessar o bosque
vi as seguintes coisas:
um gato, deitado, a olhar para mim;
uma cabana vermelha em que não podia entrar;
o esgar branco da raposa apanhada;
a aranha numa garrafa de leite,
aconchegando a mosca enfaixada,
embalando-a no seu sono;
umas chaves de carro, penduradas numa árvore;
uma fogueira, ainda quente, e um osso
do tamanho do meu braço, o meu nome
gravado nele, com erros.
O cão deixou-me aí,
e eu continuei sozinho.


Robin Robertson
[Trad. ID]
 
Corpo estranho, olhar vazio, duplo não
dizer nada e um cão. Aquela vida toda
sob o peso do entusiasmo, a armadilha
e o cúmulo até à vala negra
de temporariamente excluído.


Rui Baião, Rude,
Lisboa: Averno, 2012