quarta-feira, 31 de julho de 2013

terça-feira, 23 de julho de 2013

«As folhas dos dias estavam em branco.»


Em Agosto havia
tempo e vagar. Obras
paradas, cães sem coleira
e um vizinho sentado à janela
entre cortinas de mofo. Hang on
sleepy town. Tudo adiado.

Sobrávamos nós, os conspiradores,
murados no terraço pela sombra
das montanhas; sobravam
também, toda a tarde,
as luzidias ilhas de vinil
em rotação –

e enquanto o espinho
de diamante as percorria,
víamos por vezes
acender-se na penumbra
a cidade de onde nos tinham
degredado desde sempre

e para sempre, tão forte
era o apelo da estranha língua
nativa: ruas sem retorno, negras
escadarias, túneis que levavam,
madrugada dentro, aos enredos
do futuro –

por favor, por favor,
que tudo comece. Num silêncio
sem paz nem sossego
ficávamos depois abandonados.
E esses foram, já se sabe,
os melhores dias.





Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira
com ilustrações de Daniela Gomes, 
Lisboa: Averno, 2009

Dia 1 de Agosto, pelas 21h30, em Guimarães:






Maria João Worm / Diniz Conefrey

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Rui Nunes


O massacre concentrou-se em pequenas coisas. E sobrevive, nas cansadas viagens suburbanas. Sob os olhos colados de sono, a mão esquecida pesa ou afasta, às vezes cai, abandonada. Um cão enrola-se debaixo de um banco: as palavras têm aqui a aspereza de um vidro riscado. Estação a estação fica mais nítido o vómito nas janelas. E cada minuto recua até encontrar a sua explicação. 
Quem não conhece estas manhãs, duvida:
somos todos o passado clandestino dos felizes, quando o rio era um brilho entre salgueiros, um desvio incerto da infância. 


in Uma Viagem no Outono,
Lisboa: Relógio D'Água, Junho 2013

terça-feira, 2 de julho de 2013

ACORDEÃO


Pedir de mãos vazias é demasiado
triste. Talvez por isso, chegou a tocar
acordeão. Uma velha melodia
incapaz de ser alegre,
ainda que nos lábios um sorriso,
olhos apontados em direcção incerta.
O cão parece sentir a mesma coisa,
enrolado agora a um canto do tapete.

É dia de S. Valentim, com letreiro afixado
na montra, o problema da poesia frouxa
está oficialmente controlado. De repente
precisamos de todo o espaço
que vai da garganta ao coração,
esquecemo-nos da conversa
com que estávamos para aqui
a libertar o tempo e a prender ideias.

Mas é a realidade que muda
ou somos nós? É espantoso
o que uma pequena melodia consegue fazer.
Às vezes é preciso ficar só,
com os nossos próprios medos,
ser capaz de suportar a escuridão.
E na terra expropriada construir
novos edifícios. Quando já não doer tanto.


Vítor Nogueira, Comércio Tradicional,
com capa de Luís Henriques,
Lisboa: Averno, 2008