quarta-feira, 30 de maio de 2012

28 de octubre de 1935

Si pienso en una lengua y escribo “el perro persigue a una liebre por el bosque” y quiero traducirlo a otra lengua tendré que decir “la mesa de madera blanca hunde sus patas en la arena y muere casi del susto al reconocerse tan [idiota]”


PABLO PICASSO

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A vida é impossível, não importa
o Vicks Vaporub, o que nos fazem
ou o que nos fazemos, se ou quanto.
Desde que o primeiro homem se lembrou
de que não era cão, ficámos condenados
a saltérios e musas e juros com fermento,
à sina de gravatas e aprestos.
Que mal tinha ser cão, além do bem
de comer carne crua e cheirar cus
e vaguear pelas estações do mundo?
Mas não: havia que salar a focinheira
do porco, pôr rosmaninho nas virilhas
e inventar a cadeira rotativa,
moribundelirar amores obtusos
e de tudo intentar a mais-valia,
composta e previdente e pequenina.

Ora, acontece que, seja dia ou noite,
só me apetece ladrar à maresia.


- Miguel Martins
Rodrigo Lira
(1949 – 1981)



C/NSTRUÇÕES


Sobre este cão
Morto
Edificarei
as minhas catedrais
O que mais pecados tenha
pescado que carregue a primeira
pedra
Sobre pedra sobre estas
Areias douradas
edificarão o meu hotel
de cinco estrelas.



(Reproduzido em Informe para extranjeros – Antología de poesía chilena contempoánea; prólogo de María Nieves Alonso; selecção de María Nieves Alonso, Gilberto Triviños, Juan Carlos Mestre e Mario Rodríguez; Diputación de Huelva, 2001, p. 55).



Tradução de Luís Filipe Parrado

quarta-feira, 16 de maio de 2012

                 CÃO



Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparatado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão amarrado, preso a um fio de cheiro,
cão  a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada,
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema…

Sai depressa, ó cão, deste poema!


Alexandre O’Neill,
in ‘Abandono Vigiado’, 1960.


"[...]
Continuemos a lançar as nossas sondas, a falar a uma só voz, com palavras reunidas, e acabaremos por fazer calar todos esses cães, por conseguir que se confundam com a vegetação, observando-nos de olhos turvos, enquanto o vento lhes apaga as costas.
[...]"
René Char
[Trad. ID]

quinta-feira, 10 de maio de 2012

53.

Demasiado tarde para gemer sem
dizer como. Não é a lei que
obriga mas a promessa inscrita
na expectativa dos cães, dos me-
ninos, espécies crentes.


- Maria Velho da Costa, Da rosa fixa

quarta-feira, 9 de maio de 2012

     [...]
     E o texto escreve, na fímbria desse desejo,
que
as vozes dos pássaros e dos cães,
os espongiários do mal-estar,
e a alegria de acordar sobre o alpendre  com o corpo iluminado,
é quanto basta para haver manhã.

     Sem que o medo do fim que vem depois, e nos deixa sozinhos com a chama da vela na paisagem.



Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig 2 - o ensaio de música,
Lisboa: Rolim, 1994

segunda-feira, 7 de maio de 2012



Lipnitzki/Roger Viollet/Getty Images


Louis-Ferdinand Céline avec ses chiens, à Meudon, c. 1955
RUÍDO ÚMIDO


o amanhecer é triste
a lua ainda expulsa
à pia da manhã
os últimos dos cães
vermelho amarelo prata
despertar é despedida
(com um lenço quadriculado
na cabeça, um elegante
sobretudo claro, mirando
algo delicado do outro
lado da rua, as mãos nos
bolsos, rindo, sabemos que ela é
Sylvia Plath, e que, depois de tudo,
a palavra vida não
a levou de volta para casa)
chuto pequenas pedras
observo pequenas trevas
que ainda sobrem nas lacunas
ornamentais e fixo
o desalento


Fabiano Calixto, Sanguínea,
São Paulo: Editora 34, 2007

domingo, 6 de maio de 2012


TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR



Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.


Luís Filipe Parrado, Entre a carne e o osso,
Lisboa: Língua Morta, 2012

terça-feira, 1 de maio de 2012

RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM

Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra


António José Forte