sexta-feira, 27 de abril de 2012



Luís Miguel Queirós entrevista Vasco Graça Moura

CÃO CELESTE # 1

[…]
Há dois erros profundos: o da novidade a todo o custo e o do racionalismo. Novidade a todo o custo: … perturbador… é um novo Balzac, um novo Victor Hugo… prodigioso… Maupassant ultrapassado… É falso! Cheira a mentira. Porquê? Não é possível ao homem fazer muito de novo. Pelo contrário, muito pouco. A natureza não nos dotou para isso… apenas para fazer pequenas mudanças, nada de especial. No cerne de uma vida, já é imenso. Brassens escreve uma nova canção, percebemos logo que é uma coisa velha. Na Ásia, tudo o que era prático era rejeitado por ser ordinário. Ao passo que nós queremos que tudo seja prático e artificial. A arte é-nos hostil.  
[…]
Para fazer comprar é preciso tornar as pessoas optimistas... comprem um carro novo, novas instalações, contraiam empréstimos. O optimismo da compra. O tipo deprimido ou cínico ou céptico não pode comprar. Estar-se nas tintas para as dívidas, é isso o optimismo...
Então, de "formidável" a "espantoso" a "assombroso", vamos chegando a uma indigestão sem nome. Os outros oitocentos mil lorpas vão tentar ir sempre mais longe. De superlativo em superlativo, teremos um bando de jovens satisfeitos, que fará andar o comércio. Não é muito cómodo dizer isto, mas permite-nos fazer um balanço muito severo e lúcido da época em que vivemos.
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Louis-Ferdinand Céline, “Interview avec Georges Cazal”, 1958
[Trad. ID]

quarta-feira, 25 de abril de 2012

cães: 1




pela estrada de néon

vai em fuga uma matilha de cães

cada um de sua resplandecente cor

cruza os céus numa debandada feliz,

rechaçada pela ira de um deus que trauteia



trauteia uma fuga (os dedos a tamborilar sobre o vermelho das nuvens)

sorri para a linha do poente

sabe que é uma invenção dos cães

dos cães que agora fogem pelo éter



numa queda circular voam os cães

dão voltas à esfera azul

amiúde, cada um para si, choram a ausência dos donos

(os cães vão em fuga pela estrada de néon)




- Alexandre Sarrazola, Thaumatrope, Lisboa: Averno, 2007

domingo, 22 de abril de 2012

PASSEIO SOBRE A CIRCUNFERÊNCIA


No interior do círculo que engloba os seres numa comunidade de interesses e de esperanças, o espírito inimigo das miragens abre um caminho do centro até à periferia. Já não consegue ouvir de perto o bulício dos humanos; quer observar do mais longe possível a simetria maldita que os une. Vê mártires em todo o lado: uns sacificam-se por carências visíveis, outros por necessidades incontroláveis, todos prontos a sepultarem os seus nomes sob uma certeza; e, como nem todos podem lá chegar, a maioria expia pela banalidade esse entusiasmo do sangue com que sonhou... As suas vidas são feitas de uma imensa liberdade de morrer que não souberam aproveitar: inexpressivo holocausto da história, a vala comum devora-os.
Mas, o fervoroso das separações, ao procurar caminhos não frequentados pelas hordas, retira-se para a margem extrema e avança no limite do círculo, que não pode transpor enquanto estiver submetido ao corpo; no entanto, a Consciência paira mais longe, inteiramente pura num tédio sem seres nem objectos. Já não sofrendo, superior aos pretextos que nos convidam a morrer, ela esquece o homem que a suporta. Mais irreal do que uma estrela pressentida numa alucinação, ela propõe a condição de uma pirueta sideral, - enquanto sobre a circunferência da vida a alma se passeia, encontrando-se apenas a si própria e à sua impotência para responder ao apelo do Vazio.


Emil Cioran
in Précis de Décomposition (1949)
[Trad. ID]

sexta-feira, 13 de abril de 2012

[…]


Mais do que forma do conhecimento a poesia é, acima de tudo, modo de vida – e de vida integral. O poeta existia no homem das cavernas, existirá no homem das idades atómicas: porque é parte irredutível do homem. Da exigência poética, exigência espiritual, as próprias religiões nasceram, e por favor poético a centelha do divino vive para sempre no sílex humano. Quando as mitologias desabam, na poesia é que o divino encontra refúgio; talvez mesmo o seu novo fôlego. E até na ordem social e no imediato humano, quando as Portadoras de Pão do cortejo antigo dão lugar às Portadoras de Archotes, na imaginação poética é que vai ainda incendiar-se a elevada paixão dos povos em busca de claridade.

 
[…]


Assim, por adesão total àquilo que é, em vossa intenção o poeta mantém-se ligado à permanência e à unidade do Ser. E a sua lição é de optimismo. Para ele, uma só lei de harmonia dirige todo o mundo das coisas. Nada ali pode acontecer que exceda, por natureza, a medida humana. As piores perturbações da história não passam de ritmos sazonais num mais vasto ciclo de encadeamentos e renovações. E as Fúrias, que atravessam a cena de archote erguido, só por um momento iluminam o vastíssimo tema em curso. De forma alguma as civilizações que amadureceram morrem das angústias de um outono, limitam-se a mudar. Só a inércia é ameaçadora. Poeta é o que rompe em nossa intenção o hábito.


[…]


E chega, ao poeta, ser a má consciência do seu tempo.


Saint-John Perse, Pássaros,
trad. Aníbal Fernandes,
col. “Cão Vagabundo”, Lisboa: Hiena, 1994