sábado, 28 de dezembro de 2013

Beatriz Hierro Lopes


A rua era garganta. Voz de acordeão cego. Banco desdobrável para não se fazer esperar demasiado tempo à hora da partida. À entrada do bazar, de música alinhavada ao sobretudo preto, o velho usava de uma cegueira quase branca, quase azul, exposta à via pública. No pulso esquerdo, um cordão pintado de verde ligava-o ao pescoço de um vadio de pêlo ralo que sabia da música pela vibração do fio ao traduzir o movimento dos dedos do seu senhor sobre as teclas. [...] - CONTINUA AQUI

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

UMA ESPÉCIE DE CONTO DE NATAL


Reuniam-se aos domingos à tarde
na leitaria
com os casacos de pele de zebra e os bichos
ao pescoço de olhos de vidro
na juventude tinham sido
criadas de servir
e toda a vinha tinham lutado
por uma boneca loira em cima da cama
com colcha de cetim cor-de-rosa e passamanarias
a ponto de dormirem no chão
transidas de frio
bebiam chá comiam torradas
com muita manteiga
e pediam bolos de creme colorido
uma vez por outra o criado simpático
(havia um outro mas com maus modos para elas)
conseguia arranjar-lhes restos
de bolo de noiva
e as três exultavam então
só por acanhamento não encomendavam
um bolo de noiva para as três
num dia de Natal particularmente frio
sentiram qualquer coisa
nas saias plissadas
era um rato vulgar com um olhar
muito meigo e assustado
afeiçoaram-se logo ao animal
que levaram para casa comovidas
chamavam-lhe o nosso menino lindo
e consentiam-lhe tudo
o rato de noite roía as três bonecas
e as três de manhã iam contemplar os estragos
como aquelas pessoas que se deixam ficar paradas
diante da casa onde se consumou o crime hediondo
ao menos podiam ter arranjado um cão
ou uma criança da Santa Casa
quando o rato adoeceu chegaram a ser insultadas
nas salas de espera das clínicas veterinárias
(a excentricidade nos afectos mais tarde ou mais cedo
sai cara)
o rato ficou internado uns dias
e elas suspeitaram que tinha sido trocado
desconfiaram então muito das instituições
o mundo afinal era uma encenação
e não valia a pena perguntar
se um criado um veterinário ou um bolo de noiva
eram a sério ou a fingir
só se podia tentar averiguar se a encenação
revelava bom gosto ou não


ADÍLIA LOPES

sábado, 14 de dezembro de 2013

QUESTÕES DE VOCABULÁRIO




"Em Portugal, e não só, esta novilíngua tem sido bastante eficaz a fissurar as relações entre os trabalhadores das entidades privadas e dos serviços públicos, e igualmente eficaz a gerar sentimentos de culpa entre os cidadãos, já que tudo o que se prende com serviços sociais do Estado tende a ser apresentado como um peso, um despesismo sem retorno (como se não tivesse relação com os impostos que pagamos). Neste contexto, flexibilidade é o conceito normalmente usado para conferir uma sugestão de dinamismo social e económico ao que não é senão precariedade nas relações laborais."

Rosa Maria Martelo
in Cão Celeste n.º4, Lisboa, Novembro de 2013




domingo, 8 de dezembro de 2013

BANCO QUALQUER COISA


V


A última vez que te encontrei foi diante do Banco Qualquer Coisa. Verificavas o preço das acções. Elas baixaram, não há dúvida. Talvez isso prejudique o teu futuro na América e até mesmo a tua actual capacidade para os estudos. És fraco e não podes impedi-lo. Se fosses resoluto poderias ordenar a um dos responsáveis: "sobe-me essas acções, badameco!"
Não confio já nos santos ou nos poetas e muito menos nos heróis.
Tudo é agora uma questão de mais ou menos brutalidade, de maior ou menor capacidade de matar. Impunemente - é preferível.
As acções baixam - não há dúvida.


Manuel de Castro, "Hans e a mão direita"
in GRIFO - Antologia de inéditos organizada e editada pelos autores, 1970





Ilustração de Luís França
in Cão Celeste n.º4, Lisboa, Novembro de 2013

sábado, 7 de dezembro de 2013

# 4




No quarto número do Cão Celeste
com direcção de Inês Dias/Manuel de Freitas 
e coordenação gráfica de Luís Henriques, 
colaboram Abel Neves, Alberto Pimenta, Alexandre Sarrazola, Ana Menezes, 
Ana Isabel Soares, André Lemos, Bárbara Assis Pacheco, Cláudia Dias, 
Daniela Gomes, Diniz Conefrey, Fabiano Calixto, Gavarni/Estúdios & etc, 
Inês Dias, Isabel Baraona, Isabel Nogueira, Joana Matos Frias, Jorge Roque, 
José Ángel Cilleruelo, José Miguel Silva, Luís Filipe Parrado, Luís França, 
Luís Henriques, Manuel de Freitas, Manuel Diogo, Maria João Worm, 
Maria Da Conceição Caleiro, Paulo da Costa Domingos, Rosa Martelo, 
Ricardo Castro e Rui Nunes.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

MANDELA / DA ESPERANÇA




John Mateer, 'Invictus e a revolução negociada ou a ideia de poema lírico segundo Clint Eastwood'
in Cão Celeste n.º2, Lisboa, Outubro 2012