sexta-feira, 29 de maio de 2015

DA ORTOGRAFIA NOVA, DIZEM


Passo a passo o gandulo
Ainda bota acento no cú
Perante os espetadores
Que dizem ah para os lados de chelas
Ou fazem oh
Chegados a s. bento
O estilo
(cagança semiótica)
Vai além da gravata
Ou fralda de fora
Ser côxo é outro modo
De caminhar entre a arrogância
É tudo uma questão de bons-dias


Nunes da Rocha, Sabão Offenbach,
Lisboa: &etc, 2015

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Manuel de Freitas


Sabes tão bem como eu
que a Rua de Santa Maria
não tem fim. Ladeia o oceano,
demora-se junto de cães sentados
e oferece quando pode um cigarro
à primeira puta que afasta as cortinas.

Para trás fica o comércio,
indiferente ao sino cansado
da Sé e aos gins (se te lembras)
do Sunny Bar. Mas passámos já
a débil fronteira, depois do Mercado.
Pontas de charros no chão - um aviso.

Ou as mulheres que se encostam
às portas pequenas que nos chamam
para o último copo de Jacquê.
Como se fosse (digamos assim) a vida
e tivesse agora tanto espaço para morrer.


In Sunny Bar, sel. de Rui Pires Cabral, 
Lisboa: Alambique, 2015

sábado, 9 de maio de 2015

A ASSOMBRAÇÃO


Eu sou o cão que tu puseste a dormir,
como gostas de chamar à agulha do esquecimento,
e volto para te dizer esta coisa simples:
nunca gostei de ti - nem por um momento.

Quando lambia o teu rosto,
pensava em morder-te o nariz.
Quando via como te secavas com uma toalha,
apetecia-me saltar e castrar-te num instante.

Detestava a maneira como te movias,
a tua falta de graça animal,
a maneira como te sentavas numa cadeira para comer,
com um guardanapo no colo e a faca na mão.

Eu teria fugido,
mas era muito fraco, um truque que me ensinaste
quando ainda estava a aprender a sentar e a deitar,
e - o maior dos insultos - a apertar a mão sem ter uma.

Admito que a visão da trela
me entusiasmava
mas apenas por que significava que estava prestes
a cheirar coisas que nunca tinhas tocado.

Podes não querer acreditar nisso,
mas não tenho nenhuma razão para mentir.
Odiava o carro, os brinquedos de borracha,
detestava os teus amigos e, pior, os teus familiares.

O tilintar da minha chapa levava-me à loucura.
Sempre me fizeste festas no sítio errado.
Tudo o que sempre quis de ti
foi comida e água fresca nas minhas tigelas de metal.

Enquanto dormias, ficava a ver-te respirar
à medida que a lua ia subindo no céu.
Foi precisa toda a minha força
para não levantar a cabeça e uivar.

Agora estou livre da coleira,
da gabardina amarela, da camisola com monograma,
do absurdo do teu relvado,
e isso é tudo o que tu precisas de saber sobre este lugar

excepto o que já calcularas antes
e te deixa feliz porque não aconteceu mais cedo -
que todos aqui conseguem ler e escrever,
os cães em poesia, os gatos e os outros em prosa.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014