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domingo, 17 de junho de 2018

OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS


Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3.º andar e papagaios de 5.º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.


JORGE DE SENA



[Bruce Davidson]



MANHÃS


Pendurada numa corda da roupa de um sétimo andar,
atrás de um prédio enferrujado,

todas as suas varandas envidraçadas ou com grades,
ali, em cada manhã, está uma pequena gaiola quadrada.

Cativo nesta provocação contra o céu,
nesse intervalo reflexivo entre apelo e canção,

esse Vazio que as aves nos "ofereceram",
ali na perversidade fixa de uma vertigem,

o tentilhão debate-se esporadicamente, desarmado,
mudo. Não, freneticamente vocal, mas sem ser ouvido. 

Queremos que isto seja uma ode.


John Mateer
in Telhados de Vidro n.º 18, trad. de Inês Dias,
Lisboa: Averno, Maio de 2013

domingo, 25 de fevereiro de 2018

(Des)acordo



Inês Lourenço
citada por António Barahona
in Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea,
Lisboa, Averno, 2011

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

SETEMBRO


"Seldom we find" says Solomon Don Dunce
"Half an idea in the profoundest sonnet"

Edgar Allan Poe



A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra, correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada 
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu,
deuses de papelão sentando-se a meu lado. 

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?



Mário Botas
in Aventuras de um Crâneo e outros textos,
org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno, 2013



sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Era um país, um corpo,
uma cidade de ossos
calcinados, onde nem cães
metiam o dente.

E o corpo é um cristal lívido
no centro d'uma praça, deportado,
límpido, onde nem os homens
se atrevem.

A cidade aposta-se toda
na espessura do sono, na
candura banal, vulgar,

do país em ruína:
impaciente.


Paulo da Costa Domingos, Cal,
com prefácio de Vitor Silva Tavares, Lisboa, Averno, 2015

segunda-feira, 10 de julho de 2017

PÕE OS OLHOS NA ÁGUA


"[...] mudar
o mundo (mudá-lo para onde?).
[...]"


José Miguel Silva
in Cão Celeste n.º 8, Lisboa, Dezembro de 2015 | 
Últimos Poemas, Lisboa, Averno, 2017





[Capa de Luís Henriques]

sábado, 22 de abril de 2017

A EITO


Cada verso começa com uma maiúscula
Cada verso é um portal

KILGORE TROUT JR.


Escrevo a eito
Até fazer uma lombada mínima
Assim começo

Nada aqui é fingimento ó pé-de-salsa
Nem o que deveras sinto

Ocupo a clareira da poesia
Para fumar um cigarro em paz

Aí, no bravio descampado
Por minha conta
Estendo-me como uma asa
Ao tráfico da carne

E enquanto travo o fumo cinzento
Procuro palavra a palavra
Outra coisa

Um cão ao sol
Um caderno sensível abandonado num campo

Que alumie no regresso a casa
Os lugares escuros do quarto
E afaste a manhã conformada
Atrás da porta

Para onde não haja nem palha nem grão
Nem bafinho de menino
Ou galo a cantar.


João Almeida, Hotel Zurique,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Pedro Santos, 
Lisboa, Averno, 2017



quinta-feira, 3 de março de 2016

CÃO ESTRANGEIRO

[...]

(à volta de, fotograficamente)


O Obturador controla, com
engenho e arte, o tempo de exposição à luz e revela a prova de Autor, assina-a, do crime ao castigo. Fecha-se a cortina no teu focinho espantado, os olhos incendiados, a boca escancarada, o sangue lento no coração.


- Ricardo Álvaro
in AAVV, Nós, os desconhecidos,
org. de Daniela Gomes e Rui Pires Cabral, Lisboa, Averno 2012