Mostrar mensagens com a etiqueta Manuel de Freitas. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Manuel de Freitas. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

SETEMBRO


"Seldom we find" says Solomon Don Dunce
"Half an idea in the profoundest sonnet"

Edgar Allan Poe



A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra, correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada 
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu,
deuses de papelão sentando-se a meu lado. 

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?



Mário Botas
in Aventuras de um Crâneo e outros textos,
org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno, 2013



segunda-feira, 25 de maio de 2015

Manuel de Freitas


Sabes tão bem como eu
que a Rua de Santa Maria
não tem fim. Ladeia o oceano,
demora-se junto de cães sentados
e oferece quando pode um cigarro
à primeira puta que afasta as cortinas.

Para trás fica o comércio,
indiferente ao sino cansado
da Sé e aos gins (se te lembras)
do Sunny Bar. Mas passámos já
a débil fronteira, depois do Mercado.
Pontas de charros no chão - um aviso.

Ou as mulheres que se encostam
às portas pequenas que nos chamam
para o último copo de Jacquê.
Como se fosse (digamos assim) a vida
e tivesse agora tanto espaço para morrer.


In Sunny Bar, sel. de Rui Pires Cabral, 
Lisboa: Alambique, 2015

quinta-feira, 17 de julho de 2014

AURORA(S)


"Era um cão com muita teoria"
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora. Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.

Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como "histórias verdadeiras",
casaram ou morreram - tanto faz.

O cão, sem nome, aceita o favor
da trela nesta "noite demasiado morta"
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. "P'ra mim é tinto" - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.

Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.


Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

sábado, 6 de abril de 2013

THE SKY'S GONE OUT


No future, just a little past.
Sim, até os punks podem ter saudades.
Regressavam ao esmo de uma
obscura cidade da Alemanha
e não encontravam o Gingão,
o Gráficos, o Esteves da taberna homónima.
Também não encontravam, claro,
o fulgor bêbedo dos quinze anos
(fenómeno bastante natural).
Raio de povo este, que nem ao futuro
consegue pôr os cornos,
injectado de pavor e de memórias.

Não,
não é feliz aquilo a que chamamos noite.
Os mais jovens (e mais estúpidos) substituem
distraidamente aqueles que a idade
tornaria ainda piores. "All we ever got
was cold" - não duvidem.
O Esteves, por exemplo, nunca
ouviu falar do parente literário
que talvez tivesse sido dono de uma tabacaria.
Preferia segurar a porta nos ombros
de betão armado e sacudir a cinza, desconfiando
sempre dos novos guerrilheiros urbanos.
Nenhuma navalha o matou; atropelado na aldeia,
acedeu em trespassar sabedoria e esquecimento.

Outro caso de que me lembro: o do Manel
do Estádio. Não sei, aliás, como enterrá-lo.
Morreu como ninguém morre,
faltou-me todo inteiro numa tarde de Novembro.
Chegou de um Norte qualquer, o meu Manel
somente, e trouxe menos fundura ao poço 
da minha e de tantas outras vidas.
Só foi pena ter doído assim a última cerveja,
no maior desconhecimento de me estar a despedir.

Batemos a portas fechadas, sentimos nos ouvidos secos
a penumbra de um vinho impartilhável.
E é, afinal, tão simples: destronada a música,
ninguém ousará sequer convidar-nos para dançar.
Que nos murassem as certezas, estava bem.
As dúvidas, contudo, deixaram de ter onde nos ferir.
Olhos impávidos vêem o cão da noite recolher-se,
abrir por curiosidade as veias, saborear a derrota.
"All we ever wanted was everything" - mas
deram-nos sopa de nada, restos num prato vazio.


Manuel de Freitas, A Flor dos Terramotos,
Lisboa, Averno, 2005

[retirado daqui]

domingo, 24 de março de 2013

ALONE TOGETHER


à memória de Mário Alberto


Não sou saudosista, até porque sempre tive grandes dúvidas de que haja épocas dignas de serem vividas. Muito menos, acrescento, serei saudosista do que não vivi. E não conheci, infelizmente, o Mário Alberto. Gostava muito de me ter embebedado com ele, mas não calhou. Quando cheguei a Lisboa, já o Parque Mayer era uma ruína pouco aliciante, sem a corrosão ou a magia de outros tempos. Havia, é certo, algumas tabernas. Mas a própria Baixa foi definhando; as livrarias transformaram-se em bordéis, os cafés foram-se tornando irrespiráveis, incompatíveis, quase todos, com a minha obscena vontade de fumar. Resta o Estádio, na sua triste e azul teimosia. Nunca morri de amores pela Trindade, e a estátua pouco equestre do Pessoa matou-me de vez a Brasileira.

Não houve, repito, tempos melhores. Mas seria outra coisa, fatalmente preferível, encontrar num desses cafés o Manuel de Castro, o António José Forte, o Mário Cesariny, o Ernesto Sampaio - ou o Mário Alberto, claro. Hoje temos a pouca sorte de assistir à "criação ao vivo", como se a literatura fosse uma matança do porco, em directo. Temos, enfim, poetas muito mediáticos, gente deveras talentosa e os cagalhões ampliados da Joana Vasconcelos. Uma colorida tristeza, se virmos bem.

[..]


Manuel de Freitas, Cólofon,
Lisboa: Fahrenheit 451, 2012

sábado, 1 de dezembro de 2012

quarta-feira, 6 de junho de 2012

FRUTOS SECRETOS

Emanuel Jorge Botelho, Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano), Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011; Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo, Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011.


Emanuel Jorge Botelho é, em boa parte por deliberação própria e respeitável, um «poeta invisível». Há vários anos que a maioria das suas publicações têm tiragens limitadíssimas, sendo muitas delas destinadas exclusivamente a ofertas. Ainda assim, convém lembrar que, na década de oitenta, o autor publicou vários livros em editoras de prestígio, como a & etc. ou a Frenesi, o que torna menos compreensível a ausência deste poeta na pretensa e pretensiosa antologia «totalitária» intitulada Poemas Portugueses (Porto, Porto Editora, 2010). Digamos, para abreviar, que Emanuel Jorge Botelho está em boa companhia, pois também não figuram, nessa antologia que supostamente nos oferece o século XX português na íntegra, os nomes de Emanuel Félix, António Barahona ou José António Almeida.
Em 2011, Emanuel Jorge Botelho publicou duas plaquetes, correspondendo cada uma delas a um único poema. São ambas edições fora do mercado, mas isso não constitui motivo para que sejam criticamente ignoradas por quem lhes teve acesso. Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano) tem, desde logo, a particularidade de a dedicatória ser parte integrante do título. E, para quem não saiba, Urbano tem sido um assíduo companheiro do poeta, em livros tão graficamente irrepreensíveis como Ruídos da Luz (2007), As Flores e as Cinzas (2009) ou Antero de Quental, a Vida e uma Manhã (2010). Mas, aspecto ainda mais relevante, a leitura de Vigílias tem tudo a ganhar se conhecermos a obra plástica de Urbano, com a qual estes versos exemplarmente dialogam. É de assinalar, aliás, que cinco das sete estrofes deste poema são interrogações, que de modo nítido e conciso nos reenviam para o universo artístico de Urbano: «a quantas árvores / deste o nome da terra? // quantas vezes a cor foi, / na tua mão, / a prece lavada / do silêncio do mundo?». Simultaneamente, este belíssimo poema diz-nos muito acerca da poética de quem o escreve, assente, nos seus melhores momentos, nessa obstinação de esculpir, longe do ruído, uma «prece lavada» ou um «segredo branco». Tratando-se de um poema de amizade e homenagem, cuja capa consiste num desenho isolado de Urbano, Vigílias é também um pequeno desdobrável em que a memória das coisas e dos seres se dissipa rumo ao intemporal (ou à «hora de Deus», como sugere a epígrafe de Rilke) que caracteriza, afinal, a grande poesia: «que idade tinhas / quando a primeira árvore / te disse para subires?». Assim, precisamente, termina este breve poema – um dos textos mais marcantes que o ano de 2011 me deu a conhecer.

Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo é, por sua vez, um poema dedicado ao pai do poeta, José Maria Botelho (1923-1999). Mas logo percebemos que este luto distanciado – se é que, na morte de um pai, pode alguma vez existir distância – recusa o caminho fácil da grandiloquência ou do pranto derramado. Em vez disso, e lembrando sem dívidas um tom caro ao também açoriano Vitorino Nemésio, as primeiras palavras são de um coloquialismo desarmante: «mais dia, menos dia, José, / apareço por aí, / levado, à boleia, pelo alazão da morte.». A prosódia – seca, contida, mas veemente – é aqui sabiamente cinzelada de estrofe em estrofe, num ritmo tão lírico quanto epistolar: «guarda-me um lugar de alma / a dois palmos da tua mão, / por causa do gume da noite / ou do silvo de cada manhã. // e deixa dormir o meu silêncio / com a face pousada no teu ombro, / enquanto, baixinho, a tua voz / chama pelo nome cada lágrima.». A termos de fazer uma comparação musical, dir-se-ia que esta tensão poética, forte e enxuta, mais depressa se avizinha da rígida introspecção de um Sainte-Colombe do que dos sobressaltos românticos ou da solenidade barroca de Lully e Haendel. A única – e última, aqui – exclamação é sabiamente guardada para o verso final: «boa noite, meu pai!». Pouco mais, entre trevas, se pode dizer a um morto que em nós se tornou imenso.


- Manuel de Freitas
in Cão Celeste, n.º1