segunda-feira, 25 de agosto de 2014

OS CÃES

Os rapazes não serviam para nada. Nos dias em que não chovia iam para o penedo da curva do rio imitar o vento. Se fazia calor empanturravam-se de amoras e corriam para a charca onde se deixavam ficar até o sol desaparecer por detrás dos silvados mais altos. Nos dias de muito frio aninhavam-se abraçados um ao outro e iam cuspindo para o lume se calhava alguém falar no diabo. De Verão e de Inverno nus da cintura para baixo. Sempre nus. Não tinham préstimo, os rapazes, quando os foram buscar à várzea e os puxaram de dentro das ramadas bravas de um vinhedo, rente à levada, e os acartaram num carro de bois pela serra acima para os devolver aos pais. Na terra toda a gente dizia que os pais dos rapazes eram irmãos. Não importava, desde que se mantivessem arredados naquela granja da meia encosta, quase na cumeada, sem luz nem água; cheia de esterco à volta – das cabras, dos cães e dos rapazes.

Os pais dos rapazes viviam de levar as cabras para a serra e de carregar mato para uma ou outra casa grande. No povo ninguém lhes dava trabalho. Não os chamavam para jorna nenhuma nem se esqueciam do dia em que a mulher pariu os dois moços, havia mais de vinte Invernos, naquela granja batida a chuva, com a ajuda da velha, a sua mãe, enquanto os dois homens saíam para o temporal, o novo com o cajado a roçar nas urzes e a gritar com as bestas serra acima, o velho com uma corda do mato a tiracolo a descer na direcção do carvalhal. O velho foi pendurar-se num galho e ficou para ali até o povo dar com ele. O vento a uivar-lhe na boca escancarada como acontecia aos esfaimados que se enforcavam por falta de sustento. Contava-se que não tinha querido ver os moços por serem filhos de quem eram. Era o que se dizia, porque aos da granja mal se lhes ouvia a voz. A velha e o casal eram de parcas palavras e os rapazes nunca tinham aprendido a falar. Percebiam o que se lhes dizia, entendiam-se com os cães, os pássaros e os outros bichos. Mas não falavam.

[...]


Alexandre Sarrazola, Neófitos
Lisboa: Averno, 2014




[Fotograma: Andrei Tarkovsky, 'O Espelho', 1975]

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

domingo, 3 de agosto de 2014

PENÉLOPE


Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais um
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.


- INÊS LOURENÇO