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quarta-feira, 9 de março de 2016

2012 | 2015 | ...


«Algures entre o jornal e a revista, o Cão Celeste pretende apenas ganir, ladrar com raiva ou paixão, amar ou odiar sem peias aquilo que o mundo quotidianamente lhe dá a ver. De seis em seis meses, os leitores interessados terão notícias nossas.
Mas não somos um grupo, não obedecemos a qualquer cartilha literária ou política que possa servir para classificação geral. Este é, antes de mais, um espa...ço de encontro entre pessoas que ainda consideram urgente o livre exercício da crítica, do pensamento ou da revolta. E é justamente em nome dessa precária liberdade que prescindimos de qualquer apoio exterior, passível de condicionar os nosso gestos.
Repudiamos, de modo inequívoco, o acordo ortográfico pretensamente em vigor - e fazemos questão de sublinhar, sempre que possível, essa repulsa. Mas temos outros ódios, claro - e, felizmente, afectos e devoções não menos intensos. Apesar de tudo, e ainda que de longe em longe, a lanterna de Diógenes mantém o seu esquivo e necessário fulgor.»
 

Editorial
in Cão Celeste n.º 1, Lisboa, Abril de 2012



*


Era uma vez um cão, celeste e com dentes aguçados, obstinado numa crítica inclemente do que se passa à nossa volta. Mas demolir, apenas, é um exercício pobre, peca por falta de generosidade — ou de atenção — ao que de bom (sendo raro) se passa também à nossa volta. A prática da repulsa é tão necessária quanto os exercícios de admiração pelas vidas, obras e atitudes que nos continuam a (co)mover. Serão poucas, mas existem.

Não se pode falar, em rigor, de uma segunda vida do cão. O cão é eterno, ladra desde o tempo de Diógenes até à crítica do espectáculo feita por Debord ou ao riso iconoclasta de Alberto Pimenta, passando ainda por Montaigne ou Swift, entre muitos outros. Morrerá, a ladrar, quando este mundo cão morrer. Esta revista, porém, adopta a partir do presente número um grafismo diferente, que em nada contraria as premissas originais.

A esta inflexão gráfica correspondeu, por mérito do acaso, uma espécie de invasão poética bastante notória. Na verdade, a questão do género literário nunca nos inquietou, pois a ideia inicial foi reunir textos e imagens, abolindo fronteiras. Podemos, quando muito, deduzir de uma tão intensa colaboração lírica que a poesia continua a ser a melhor arma — e a mais inútil, também — para demonstrar a nus, despidos e andrajosos de luxo que o vosso reino pseudo-literário não nos interessa. Temos pena, isso sim, que este número do 'Cão Celeste' já não possa ser lido pelo Vitor Silva Tavares.


Breve nota editorial
in Cão Celeste n.º 8, Lisboa, Dezembro de 2015


quinta-feira, 23 de abril de 2015

FIDELIDADE




Silvina Rodrigues Lopes, "O nada que se vive, que se escreve. Jorge de Sena",
Cão Celeste, n.º 1, Lisboa, Abril de 2012

terça-feira, 25 de setembro de 2012


Houve um período, entre meados do século XVIII e fins do século XIX, em que os escritores tinham o poder de influenciar as leis ou os costumes. Poetas, philosophes, romancistas, dramaturgos eram escutados e discutidos, as suas obras geravam interesse, podiam chocar ou deliciar a nascente Opinião Pública. Um artigo de jornal podia abrasar parlamentos, um livro podia ser censurado e apreendido, um autor podia ser adulado ou chantageado, condenado a comendas ou calabouços. Porque se lhe reconhecia poder de influência, a literatura era levada a sério (ou seja, temida) pelas autoridades políticas, económicas, militares, eclesiásticas.

Depois surgiram os meios de comunicação de massa, democratizou-se a arte, liberalizaram-se os costumes, o autoritarismo e o moralismo caíram de moda na imprensa burguesa, a consciência livrou-se dos velhos constrangimentos das eras metafísicas ou religiosas, e a espécie humana entrou num processo de juvenilização. A seguir à Primeira Guerra Mundial, bengalas e chapéus perderam estatuto, subiram os salários e as bainhas das saias, o povo das igrejas passou às danceterias e aos grandes armazéns, o chicote foi substituído pelo volante.

Aos poucos, um escritor que aspirasse a ser perseguido por delito de opinião não tinha outro remédio senão mudar-se para um regime ditatorial. É certo que nas democracias parlamentares um livro podia ainda ser banido por ofensa às instituições ou à moral burguesas, mas essa criminalização já não passava dum reflexo atávico e dum anacronismo; um anacronismo político, ao atribuir ao literato uma influência que ele já deixara de ter, mas também económico, ao não perceber o potencial escravizador da chamada “libertação sexual”, que a singela geração dos baby-boomers julgava intrinsecamente revolucionária. O tempo de Zola, e de D. H. Lawrence, havia passado irremediavelmente. E, com a possibilidade de controlo do espaço comunicacional pelos equalizadores publicitários e propagandísticos, dos intelectuais já nada havia a temer; pela primeira vez na história, um escritor tinha toda a liberdade para dizer o que quisesse, porque se havia tornado invisível, isto é, irrelevante.

O primeiro género literário a desaparecer do radar cultural foi a poesia, ainda no século XIX, quando os poetas viraram costas às expectativas burguesas para seguirem uma via de especialização que os deixaria a falar apenas uns com os outros, à maneira dos físicos ou dos matemáticos; com isso, inevitavelmente, a poesia ganhou em intensidade expressiva o que perdeu em leitores. Quanto ao romance e ao teatro, puderam conservar por mais algumas décadas, se não a influência, pelo menos um certo prestígio. E um indício desse remanescente de prestígio da cultura letrada e humanista em geral era que, ao contrário do que hoje sucede, nenhum membro do escol confessaria de bom grado a sua ignorância dos Grandes Vultos da Literatura, clássicos ou modernos. Podia não os ler, mas, a menos que quisesse passar por bárbaro ou industrial norte-americano, sentia-se obrigado a fingir que sim.

Algo de semelhante ocorreu no palco da atenção popular, embora aí a literatura séria nunca tenha chegado verdadeiramente a assentar o pé; mas onde esteve mais perto de o conseguir (em certos círculos de ilustração proletária), foi apenas para se ver sucessivamente ultrapassada pelo cinema, a rádio e a televisão, num movimento geral da actividade leitora para a inércia espectadora, da literacia para o consumo de imagens, do maior para o menor esforço. Perdida a tribuna da atenção letrada, que durante duzentos anos ocupou quase sem competidores, e fracassada a emancipação do povo através da alfabetização, idealizada pelo Iluminismo, o intelectual ficou sem objecto para as suas comunicações depressivas ou exigentes.

Em seu lugar surgiram mestres da oralidade que, ao contrário dos seus homólogos antigos, como Sócrates ou Cristo, não pretendem exortar o seu auditório a qualquer esforço de auto-superação intelectual ou espiritual. Solidamente implantados nos púlpitos duma comunicação social cartelizada, e auxiliados por técnicas de excitação emocional descobertas pela psicologia de massas, estes novos comunicadores tiram partido da natureza acomodatícia da mente humana para degradarem qualquer impulso de individualidade num narcisismo consumista e numa passividade apolítica que servem perfeitamente os interesses do poder. Deste modo, o ruído impera incontestavelmente sobre a palavra nos sistemas de comunicação dominantes, e a sedução sobre a persuasão, a propaganda sobre a informação.

Que a mistificação se tornou absolutamente instrumental para os detentores do poder, é algo que se pode aquilatar pelo progresso do eufemismo nos meios de comunicação social. Assim, e a título de exemplo, não é por acaso que hoje se pretende chamar “colaborador” ao trabalhador, que ao corte de salários e à apropriação privada de bens públicos se chama “reforma estrutural”, que à resistência anti-colonialista se chama “terrorismo” e ao terrorismo de Estado “libertação”, que se chama “democracia” à oligarquia e “lobbying” ao tráfico de influências. Escusado é notar que este esvaziamento semântico de palavras ou conceitos, tidos como “problemáticos” para a rede de poder global, tem como propósito introduzir ruído no espaço comunicacional, para que os homens, privados dum vocabulário comum, deixem de poder comunicar entre si. Uma estratégia, diga-se, com provas dadas desde o Antigo Testamento, tal como nos conta a história da torre de Babel.

Ora, que futuro pode ter a forma de indagação e de expressão a que chamamos literatura num espaço comunicacional tomado por exércitos de entertainers empenhados em difundir a surdez, a poluição lexical e a desinteligência? Que a literatura teria um papel central em tão necessária despoluição da língua, parece ser inquestionável. Mas é mais do que evidente que a presente invisibilidade do escritor torna este desígnio tão irrealista como o de purificar um Atlântico de fezes com dois cálices de cloro. Neste contexto, é inevitável perguntar: estará a literatura séria condenada à extinção por falta de leitores, perdida na torrente de trivialidade que inunda e monopoliza o espaço da atenção pública?

[...]

Sejamos realistas: se o processo de infantilização e embrutecimento do homem que alimenta o dinamismo capitalista prosseguir ao ritmo dos últimos decénios, dificilmente se imagina um jovem de 2070 a ler Séneca ou Montaigne, Tolstoi ou Joyce, T. S. Eliot ou Jorge de Sena. Por outras palavras, se nada for feito para conter a massificação do indivíduo e a sua violação moral e intelectual por hordas de comunicadores bárbaros, o mais provável é que a literatura siga o rumo de extinção a que parecem já hoje condenadas a liberdade política, a água potável, a vida marinha ou a fauna selvagem, e que as catacumbas que acolhem ainda os refugiados da literatura se convertam em túmulos selados.

A única circunstância que tornaria talvez possível o ressurgimento da cultura letrada e humanista seria uma catástrofe energética que nos fizesse voltar às velocidades romanescas do século XIX. Será essa a condição e o preço da sobrevivência da literatura, uma catástrofezinha de proporções bíblicas ou homéricas? Visto de 2012, dir-se-ia que sim. Se for esse o caso, porém, podemos estar optimistas, já que o apocalipse ecológico/económico parece irrevogável, convocado pelas trombetas duma ideologia assente na estúpida ilusão de “crescimento” infinito num planeta de recursos limitados.

Sendo estas as perspectivas, o futuro das letras, tal como o da espécie humana, só poderá ser pós-apocalíptico. Significa isto que um escritor dos nossos dias só pode apostar nos incertos leitores do século XXII. Até lá, a existência da literatura está simplesmente condenada a uma longa agonia.


José Miguel Silva, 
"Divulgações sobre o futuro da  literatura numa era de ignorância programada e pré-apocalíptica" 

domingo, 15 de julho de 2012



Cláudia Dias - Daniela Gomes - Diniz Conefrey - Isabel Baraona - José Feitor - Luís Henriques - Manuel Diogo - Maria João Worm

*

Manuel de Freitas - António Barahona - Paulo da Costa Domingos - Rosa Maria Martelo - Luís Miguel Queirós - Vasco Graça Moura - Silvina Rodrigues Lopes - João Barrento - António Guerreiro - Jorge Roque - José Miguel Silva - Mariana Pinto dos Santos - David Teles Pereira - Inês Dias - Diogo Vaz Pinto

quarta-feira, 6 de junho de 2012

FRUTOS SECRETOS

Emanuel Jorge Botelho, Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano), Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011; Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo, Ponta Delgada, Edição do Autor, 2011.


Emanuel Jorge Botelho é, em boa parte por deliberação própria e respeitável, um «poeta invisível». Há vários anos que a maioria das suas publicações têm tiragens limitadíssimas, sendo muitas delas destinadas exclusivamente a ofertas. Ainda assim, convém lembrar que, na década de oitenta, o autor publicou vários livros em editoras de prestígio, como a & etc. ou a Frenesi, o que torna menos compreensível a ausência deste poeta na pretensa e pretensiosa antologia «totalitária» intitulada Poemas Portugueses (Porto, Porto Editora, 2010). Digamos, para abreviar, que Emanuel Jorge Botelho está em boa companhia, pois também não figuram, nessa antologia que supostamente nos oferece o século XX português na íntegra, os nomes de Emanuel Félix, António Barahona ou José António Almeida.
Em 2011, Emanuel Jorge Botelho publicou duas plaquetes, correspondendo cada uma delas a um único poema. São ambas edições fora do mercado, mas isso não constitui motivo para que sejam criticamente ignoradas por quem lhes teve acesso. Vigílias do Terceiro Dia (Para o Urbano) tem, desde logo, a particularidade de a dedicatória ser parte integrante do título. E, para quem não saiba, Urbano tem sido um assíduo companheiro do poeta, em livros tão graficamente irrepreensíveis como Ruídos da Luz (2007), As Flores e as Cinzas (2009) ou Antero de Quental, a Vida e uma Manhã (2010). Mas, aspecto ainda mais relevante, a leitura de Vigílias tem tudo a ganhar se conhecermos a obra plástica de Urbano, com a qual estes versos exemplarmente dialogam. É de assinalar, aliás, que cinco das sete estrofes deste poema são interrogações, que de modo nítido e conciso nos reenviam para o universo artístico de Urbano: «a quantas árvores / deste o nome da terra? // quantas vezes a cor foi, / na tua mão, / a prece lavada / do silêncio do mundo?». Simultaneamente, este belíssimo poema diz-nos muito acerca da poética de quem o escreve, assente, nos seus melhores momentos, nessa obstinação de esculpir, longe do ruído, uma «prece lavada» ou um «segredo branco». Tratando-se de um poema de amizade e homenagem, cuja capa consiste num desenho isolado de Urbano, Vigílias é também um pequeno desdobrável em que a memória das coisas e dos seres se dissipa rumo ao intemporal (ou à «hora de Deus», como sugere a epígrafe de Rilke) que caracteriza, afinal, a grande poesia: «que idade tinhas / quando a primeira árvore / te disse para subires?». Assim, precisamente, termina este breve poema – um dos textos mais marcantes que o ano de 2011 me deu a conhecer.

Palavras em Busca de Meu Pai, no Endereço que Calculo é, por sua vez, um poema dedicado ao pai do poeta, José Maria Botelho (1923-1999). Mas logo percebemos que este luto distanciado – se é que, na morte de um pai, pode alguma vez existir distância – recusa o caminho fácil da grandiloquência ou do pranto derramado. Em vez disso, e lembrando sem dívidas um tom caro ao também açoriano Vitorino Nemésio, as primeiras palavras são de um coloquialismo desarmante: «mais dia, menos dia, José, / apareço por aí, / levado, à boleia, pelo alazão da morte.». A prosódia – seca, contida, mas veemente – é aqui sabiamente cinzelada de estrofe em estrofe, num ritmo tão lírico quanto epistolar: «guarda-me um lugar de alma / a dois palmos da tua mão, / por causa do gume da noite / ou do silvo de cada manhã. // e deixa dormir o meu silêncio / com a face pousada no teu ombro, / enquanto, baixinho, a tua voz / chama pelo nome cada lágrima.». A termos de fazer uma comparação musical, dir-se-ia que esta tensão poética, forte e enxuta, mais depressa se avizinha da rígida introspecção de um Sainte-Colombe do que dos sobressaltos românticos ou da solenidade barroca de Lully e Haendel. A única – e última, aqui – exclamação é sabiamente guardada para o verso final: «boa noite, meu pai!». Pouco mais, entre trevas, se pode dizer a um morto que em nós se tornou imenso.


- Manuel de Freitas
in Cão Celeste, n.º1

sexta-feira, 27 de abril de 2012

domingo, 22 de abril de 2012

PASSEIO SOBRE A CIRCUNFERÊNCIA


No interior do círculo que engloba os seres numa comunidade de interesses e de esperanças, o espírito inimigo das miragens abre um caminho do centro até à periferia. Já não consegue ouvir de perto o bulício dos humanos; quer observar do mais longe possível a simetria maldita que os une. Vê mártires em todo o lado: uns sacificam-se por carências visíveis, outros por necessidades incontroláveis, todos prontos a sepultarem os seus nomes sob uma certeza; e, como nem todos podem lá chegar, a maioria expia pela banalidade esse entusiasmo do sangue com que sonhou... As suas vidas são feitas de uma imensa liberdade de morrer que não souberam aproveitar: inexpressivo holocausto da história, a vala comum devora-os.
Mas, o fervoroso das separações, ao procurar caminhos não frequentados pelas hordas, retira-se para a margem extrema e avança no limite do círculo, que não pode transpor enquanto estiver submetido ao corpo; no entanto, a Consciência paira mais longe, inteiramente pura num tédio sem seres nem objectos. Já não sofrendo, superior aos pretextos que nos convidam a morrer, ela esquece o homem que a suporta. Mais irreal do que uma estrela pressentida numa alucinação, ela propõe a condição de uma pirueta sideral, - enquanto sobre a circunferência da vida a alma se passeia, encontrando-se apenas a si própria e à sua impotência para responder ao apelo do Vazio.


Emil Cioran
in Précis de Décomposition (1949)
[Trad. ID]