segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Jean Cocteau (2)

GRAVIDADE DO CORAÇÃO


A água das fontes corre gravemente como a boca de um cão. A rosa intimida-me. Nunca ri. E a árvore dorme de pé. Não brinca. Ordena, por exemplo, à sua sombra: deita-te, descansa, partimos assim que anoitecer. Ao anoitecer, a sombra sobe-lhe para os ramos e partem.
Quem ama escreve nas paredes.
Se eu visse o meu coração, já não teria coragem para te sorrir. Ele trabalha demasiado nesta noite sem lua. Deitado sobre ti, espreito o seu galope, que me traz uma má notícia.


- in Tanta coisa por dizer,
trad. Inês Dias,
Lisboa: Língua Morta, 2012

sábado, 17 de agosto de 2013

COMPOSIÇÃO DE LUGAR


Cerra os teus olhos, eu conto.
De manhã cedo acordado,
Abraão subiu ao monte.
E sob um céu de fornalha

viu na planura queimada
lá da banda de Sodoma
um cão a chorar por todas
as cinzas que foram casas.

O cachorro tão apócrifo
acrescenta um contraponto
a esse fumo canónico
do velho bíblico conto.


José António Almeida, A Mãe de Todas as Histórias,
Lisboa: Averno, 2008

domingo, 4 de agosto de 2013


"Elas sempre existiram, as pequenas editoras contra a corrente, a que em tempos se chamava «de vão de escada». Mas elas parecem ter regressado em força um pouco por todo o lado, para contornar crises, resistir aos grandes grupos e afirmar a mais valia de pensamento e poesia. No meu último livro – O Mundo Está Cheio de Deuses. Crise e crítica do contemporâneo (Assírio & Alvim, 2011) – defendo a tese de que há inúmeros sintomas de uma generalizada tentativa de «organizar o pessimismo» (a expressão é de Walter Benjamin), e de que uma das formas actualmente mais eficazes de resistência à formatação das consciências é a pluralização dos focos de inovação, com uma clara vontade de resistir à industrialização da cultura e à mercantilização da literatura, para trazer à luz o novo e o diferente – que pode também incluir o «clássico»!
Exemplo paradigmático, e ele próprio quase já clássico entre nós, é o da Averno de Manuel de Freitas e Inês Dias, com as suas muitas pequenas edições (de que sairam recentemente de uma assentada mais três: As Coisas Naturais, de Ernesto Sampaio, As Grandes Ondas, de António Barahona e Aventuras de um Crâneo e Outros Textos, de Mário Botas), e também com a revista Telhados de Vidro, que tem marcado toda uma época com um posicionamento radical, e de que saiu agora o nº 18, com uma surpreendente antologia de poesia em 2013, em que convivem, na diferença, nomes firmados (Hélia Correia, Fátima Maldonado, A. M. Pires Cabral ou Fernando Guerreiro) com outros ainda em busca de afirmação - ou não (Jorge Roque ou Marta Chaves). Simultaneamente chega-nos o terceiro número da nova revista da Averno, a Cão Celeste, outro projecto assinalável, não apenas pelos conteúdos, mas também, e particularmente, pelo grafismo inconfundível da responsabilidade de Luís Henriques, mas com colaboração visual muito diversificada.

[...]"


João Barrento, "Os pirilampos da edição":