segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O ferro das grades


Das primeiras vezes, pensei que ladrasse à minha passagem e nem sequer me virei. Quando o olhei com atenção, percebi que entre mim e o seu ladrar havia somente uma coincidência no tempo. Focinho ao alto, olhos fixos que nem por um instante se desviavam do seu inabalável desígnio, ladrava. Não ladrava a transeunte algum que passasse. Tão pouco ladrava a Deus que, por natureza, só existe para os homens e não para todos. Fazia como eu. Vociferava para ninguém por trás das grades do pátio estreito que lhe coube em vida. Vociferava sem esperança de ser libertado ou ouvido. Talvez nem quisesse ser libertado. Talvez nem quisesse ser ouvido. Talvez sem o saber soubesse que até para outra vida tinha passado o tempo de a ter tido. Vociferava apenas. Afrontando o ferro das grades. Afrontando o céu vazio. Afrontando o silêncio que lhe respondia nas pausas do seu vociferar repetido. Vociferava cego, surdo, quase ridículo, enquanto as patas se agitavam sobre a laje num cúmulo de desespero nulo. 


Jorge Roque, Nu contra nu,
Lisboa: Averno, 2014




Francis Bacon, "Study of a dog", 1952

domingo, 16 de novembro de 2014

'Aquilo que nos deixa adormecer a cada noite'


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4. Sim, o texto começa na Achadinha, São Miguel, Açores, e é sobre animais; “cães, gatos, cavalos, burros, passarinhos de toda a espécie, tartarugas, grilos, caracóis, lesmas, borboletas, bichinhos de conta”; “a espantosa grandeza” “com que passeiam sobre o inferno”; gostar tanto deles que “talvez isso seja aquilo que ainda [nos] deixa adormecer em cada noite”. Diz a Renata: “Aos animais devemos essa luz solitária, quase música, quase silêncio, a que chamamos deus. Não o deus da Bíblia, que não sei onde repousa, mas aquele que cuida da alvorada. Porque eles o conhecem, porque com ele privam quando a primeira luz desponta.” Este texto saiu em Maio, no número cinco de uma revista chamada Cão Celeste.

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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Louis-Ferdinand Céline

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A andar sempre para a frente recordava-me da cerimónia da véspera. Fora num prado que se realizara aquela cerimónia, por detrás de uma colina, e com a sua voz grossa o coronel arengara à frente do regimento. «Corações ao alto! - tinha ele dito... - Corações ao alto! e viva a França!» Quando não se tem imaginação, morrer é coisa de nada, quando se tem, morrer é coisa séria. Eis a minha opinião. Nunca tinha compreendido tanto de uma só vez.
Mas o coronel, esse, nunca tivera imaginação. Todas as desgraças daquele homem provinham daí, aquela sobretudo. Seria eu então o único a ter a imaginação da morte no nosso regimento? [...]


in Viagem ao fim da noite
2.ª ed., trad. Aníbal Fernandes,
Lisboa: Ulisseia, 1983


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No jogo do homem, o instinto da morte, o instinto silencioso, ocupa decididamente um lugar importante, talvez a par do egoísmo. Ocupa o lugar do zero na roleta. O casino ganha sempre. A morte também. A lei dos grandes números trabalha a seu favor. É uma lei sem falhas. Tudo o que fazemos, de uma maneira ou de outra, acaba rapidamente por esbarrar com ela e por se transformar em ódio, em sinistro, em ridículo. Era preciso sermos dotados de um modo muito particular para falarmos de outra coisa para além da morte nestes tempos em que sobre a terra, sobre as águas, no ar, no presente, no futuro, nada mais existe. Sei que se pode ainda dansar no cemitério e falar de amor nos matadouros, o autor cómico mantém as suas hipóteses, mas é apenas um tapa-buracos.
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in "Hommage à Zola", 1933
[Trad. Inês Dias]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

SINGULARIDADE

Não sou mais puro só porque versejo
e Deus me quis contrariado.
O que me cerca, quase desejo,
afirma-se no tempo e na verdade.

O que me cerca tem um nome vão.
Uns dizem mundo, outros futuro.
Mundo futuro é binómio-cão.
Mordendo, ladra, os ossos me une.

O que me cerca suspende a razão
em ambos os pratos da balança.
Fica pairando, tremendo no ar
ave da esperança e da distância.

Sim! - ninguém ouse violentar-me.
Sou o que fui, serei - talvez milagre!


RUY CINATTI