segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O ferro das grades


Das primeiras vezes, pensei que ladrasse à minha passagem e nem sequer me virei. Quando o olhei com atenção, percebi que entre mim e o seu ladrar havia somente uma coincidência no tempo. Focinho ao alto, olhos fixos que nem por um instante se desviavam do seu inabalável desígnio, ladrava. Não ladrava a transeunte algum que passasse. Tão pouco ladrava a Deus que, por natureza, só existe para os homens e não para todos. Fazia como eu. Vociferava para ninguém por trás das grades do pátio estreito que lhe coube em vida. Vociferava sem esperança de ser libertado ou ouvido. Talvez nem quisesse ser libertado. Talvez nem quisesse ser ouvido. Talvez sem o saber soubesse que até para outra vida tinha passado o tempo de a ter tido. Vociferava apenas. Afrontando o ferro das grades. Afrontando o céu vazio. Afrontando o silêncio que lhe respondia nas pausas do seu vociferar repetido. Vociferava cego, surdo, quase ridículo, enquanto as patas se agitavam sobre a laje num cúmulo de desespero nulo. 


Jorge Roque, Nu contra nu,
Lisboa: Averno, 2014




Francis Bacon, "Study of a dog", 1952

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