quinta-feira, 24 de julho de 2014

Miguel Martins


Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco semanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.


- in Telhados de Vidro n.º 19, 
Lisboa: Averno, Maio de 2014



quinta-feira, 17 de julho de 2014

AURORA(S)


"Era um cão com muita teoria"
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora. Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.

Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como "histórias verdadeiras",
casaram ou morreram - tanto faz.

O cão, sem nome, aceita o favor
da trela nesta "noite demasiado morta"
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. "P'ra mim é tinto" - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.

Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.


Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ele podia ouvir os cães à distância, e os seus latidos
levaram-no até à capela que se erguia junto à estrada,
mas não entrou nela. Isto ficava aquém de rezar,
e os cães negros eram apenas os seus pensamentos de noites de terror
através das rígidas e gratificantes florestas de Santa Cruz;
o coração dele coxeia, borbulhando sangue como bagas no seu caminho,
três ou quatro cristas de palmeira, e os berros loucos dos papagaios
são como o rumor dos testemunhos num julgamento obsceno,
mas atravessam o céu róseo e desvanecem-se, e regressa o consolo.
Na quente, oca tarde um grito atravessa o vale,
um falcão plana, e atrás da chama das perpétuas uma colina arde
com uma flauta de fumo azul; isto é tudo o que há de valor.
Ó folhas, multiplicai os dias da minha ausência para os subtrair
à humilhação do castigo, à emboscada da desgraça
pelo que são: excremento que não merece nenhum tema,
nem o nó e o aprumo de um cedro ou a erva branda,
apenas o desdém da indiferença, escapar à tempestade de abusos
como o ágil movimento dos ramos que se agitam com a graça
da resistência, curvando-se do mesmo modo que o bambu obedece
às rajadas horizontais de chuva, não enquanto martírio
mas enquanto complacência natural; abaixo dele havia uma casa
em que sem qualquer ferida era mais do que bem vindo,
e cães dóceis vinham até ao portão atraídos pela sua voz.



DEREK WALCOTT
[Trad. Inês Dias]

terça-feira, 10 de junho de 2014

CÃO CELESTE # 1 a 5




Abel Neves, Alberto Pimenta, Alexandre Sarrazola, Ana Menezes
Ana Isabel Soares, André Lemos, António Barahona, António Guerreiro, 
Bárbara Assis Pacheco, Beatriz Hierro Lopes, Bruno Borges
Cláudia DiasDaniela Gomes, David Antunes, David Teles Pereira, 
Diniz Conefrey, Diogo Vaz Pinto, Emanuel Jorge Botelho, Étienne Carjat, 
Fabiano Calixto, Fernando Augusto, Gavarni/Estúdios &etc, Filipe Abranches
Inês Dias, Isabel Baraona, Isabel Nogueira, Joana Matos Frias, 
João Barrento, John MateerJorge Roque
José Ángel Cilleruelo, José Feitor, José Miguel Silva, Konoe Nobutada, 
Luca Argel, Luís Filipe Parrado, Luís FrançaLuís Henriques
Luis Manuel Gaspar, Luís Miguel Queirós, Manuel de Freitas
Manuel Diogo, Maria da Conceição Caleiro, Maria João Worm, 
Mariana Pinto dos Santos, Miguel de Carvalho, Pádua Fernandes, 
Paulo da Costa Domingos, Renata Correia BotelhoRicardo Castro, Ricardo Marques, Rosa Maria Martelo, Rui BaiãoRui Caeiro
Rui Catalão, Rui Nunes, Rui Pires Cabral, Rui Silva
ShitaoSilvina Rodrigues Lopes, Stéphane Lermais 
e Vasco Graça Moura. 

Slow Poetry



quarta-feira, 28 de maio de 2014

SEGUNDO A LEI


Os três caçadores vinham muito fatigados
E subiam. Não traziam cão. Ao longe
Muito longe, um aceno e um grito
É de crer que este lá em baixo
Tivesse deixado ir o cão
Levado para uma mina.
Após um momento, e não entendendo
Talvez o que o homem queria, prosseguiram
O poço será diferente do exílio esta vez.


Gil de Carvalho, Amazonas e Cia,
Lisboa: Paralelo W, 2014

quarta-feira, 26 de março de 2014

THE PRICE OF EVERYTHING


Money is getting noisier.
He comes home at night
with figures jingling in his head.

Money is getting taller.
It whistles down at him
from new scaffolding in the old sites.

Money is getting long-faced.
It keeps his fingers busy
when he would rather be undoing a button.

Money is getting ambitious.
It wants him to sell his old banger
and sit a girl down  beside him in comfort.


Andrew Motion, The Price of Everything,
Londres, Faber and Faber, 1994