Helen Keller
sábado, 30 de agosto de 2014
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
OS CÃES
Os rapazes não serviam para nada. Nos dias em que não chovia iam para o penedo da curva do rio imitar o vento. Se fazia calor empanturravam-se de amoras e corriam para a charca onde se deixavam ficar até o sol desaparecer por detrás dos silvados mais altos. Nos dias de muito frio aninhavam-se abraçados um ao outro e iam cuspindo para o lume se calhava alguém falar no diabo. De Verão e de Inverno nus da cintura para baixo. Sempre nus. Não tinham préstimo, os rapazes, quando os foram buscar à várzea e os puxaram de dentro das ramadas bravas de um vinhedo, rente à levada, e os acartaram num carro de bois pela serra acima para os devolver aos pais. Na terra toda a gente dizia que os pais dos rapazes eram irmãos. Não importava, desde que se mantivessem arredados naquela granja da meia encosta, quase na cumeada, sem luz nem água; cheia de esterco à volta – das cabras, dos cães e dos rapazes.
Os pais dos rapazes viviam de levar as cabras para a serra e de carregar mato para uma ou outra casa grande. No povo ninguém lhes dava trabalho. Não os chamavam para jorna nenhuma nem se esqueciam do dia em que a mulher pariu os dois moços, havia mais de vinte Invernos, naquela granja batida a chuva, com a ajuda da velha, a sua mãe, enquanto os dois homens saíam para o temporal, o novo com o cajado a roçar nas urzes e a gritar com as bestas serra acima, o velho com uma corda do mato a tiracolo a descer na direcção do carvalhal. O velho foi pendurar-se num galho e ficou para ali até o povo dar com ele. O vento a uivar-lhe na boca escancarada como acontecia aos esfaimados que se enforcavam por falta de sustento. Contava-se que não tinha querido ver os moços por serem filhos de quem eram. Era o que se dizia, porque aos da granja mal se lhes ouvia a voz. A velha e o casal eram de parcas palavras e os rapazes nunca tinham aprendido a falar. Percebiam o que se lhes dizia, entendiam-se com os cães, os pássaros e os outros bichos. Mas não falavam.
[...]
Alexandre Sarrazola, Neófitos,
Lisboa: Averno, 2014
[Fotograma: Andrei Tarkovsky, 'O Espelho', 1975]
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
domingo, 3 de agosto de 2014
PENÉLOPE
Encontrava-a aos domingos
com a teia de crochet, perto
do estádio. Ulisses regressava
a Ítaca, no fim de mais um
jornada de águias, dragões
e outros monstros. Argos
no banco de trás, abanava a cauda
para não morrer de velho.
- INÊS LOURENÇO
quinta-feira, 24 de julho de 2014
Miguel Martins
Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco semanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.
- in Telhados de Vidro n.º 19,
Lisboa: Averno, Maio de 2014
quinta-feira, 17 de julho de 2014
AURORA(S)
"Era um cão com muita teoria"
- explicou-nos, junto ao aquecedor,
na certeza de que Todorov
não frequenta a travessa do Alcaide,
ao Combro. Aurora. Dona Aurora:
guardiã provisória do declínio
(cor-de-laranja, juro) das paredes
ou dos dias - não há diferença.
Fiz questão de tirar eu próprio
do frigorífico a segunda Sagres.
Já houve naquela rua sete auroras
- não é um verso, apenas um dado
estatístico, vindo de quem sabe.
Algumas, como "histórias verdadeiras",
casaram ou morreram - tanto faz.
O cão, sem nome, aceita o favor
da trela nesta "noite demasiado morta"
(volta a dizer Aurora). É normal,
há coisas que acontecem sob a sombra
desmentida da cidade. Piano, dessa infância
triste, a apodrecer agora numa taberna
colorida. "P'ra mim é tinto" - repetem
já sem clientes os mais pequenos altares.
Enquanto um tecto sobre nós, vazio,
esconjura metáforas e recusa a noite.
Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Ele podia ouvir os cães à distância, e os seus latidos
levaram-no até à capela que se erguia junto à estrada,
mas não entrou nela. Isto ficava aquém de rezar,
e os cães negros eram apenas os seus pensamentos de noites de terror
através das rígidas e gratificantes florestas de Santa Cruz;
o coração dele coxeia, borbulhando sangue como bagas no seu caminho,
três ou quatro cristas de palmeira, e os berros loucos dos papagaios
são como o rumor dos testemunhos num julgamento obsceno,
mas atravessam o céu róseo e desvanecem-se, e regressa o consolo.
Na quente, oca tarde um grito atravessa o vale,
um falcão plana, e atrás da chama das perpétuas uma colina arde
com uma flauta de fumo azul; isto é tudo o que há de valor.
Ó folhas, multiplicai os dias da minha ausência para os subtrair
à humilhação do castigo, à emboscada da desgraça
pelo que são: excremento que não merece nenhum tema,
nem o nó e o aprumo de um cedro ou a erva branda,
apenas o desdém da indiferença, escapar à tempestade de abusos
como o ágil movimento dos ramos que se agitam com a graça
da resistência, curvando-se do mesmo modo que o bambu obedece
às rajadas horizontais de chuva, não enquanto martírio
mas enquanto complacência natural; abaixo dele havia uma casa
em que sem qualquer ferida era mais do que bem vindo,
e cães dóceis vinham até ao portão atraídos pela sua voz.
levaram-no até à capela que se erguia junto à estrada,
mas não entrou nela. Isto ficava aquém de rezar,
e os cães negros eram apenas os seus pensamentos de noites de terror
através das rígidas e gratificantes florestas de Santa Cruz;
o coração dele coxeia, borbulhando sangue como bagas no seu caminho,
três ou quatro cristas de palmeira, e os berros loucos dos papagaios
são como o rumor dos testemunhos num julgamento obsceno,
mas atravessam o céu róseo e desvanecem-se, e regressa o consolo.
Na quente, oca tarde um grito atravessa o vale,
um falcão plana, e atrás da chama das perpétuas uma colina arde
com uma flauta de fumo azul; isto é tudo o que há de valor.
Ó folhas, multiplicai os dias da minha ausência para os subtrair
à humilhação do castigo, à emboscada da desgraça
pelo que são: excremento que não merece nenhum tema,
nem o nó e o aprumo de um cedro ou a erva branda,
apenas o desdém da indiferença, escapar à tempestade de abusos
como o ágil movimento dos ramos que se agitam com a graça
da resistência, curvando-se do mesmo modo que o bambu obedece
às rajadas horizontais de chuva, não enquanto martírio
mas enquanto complacência natural; abaixo dele havia uma casa
em que sem qualquer ferida era mais do que bem vindo,
e cães dóceis vinham até ao portão atraídos pela sua voz.
DEREK WALCOTT
[Trad. Inês Dias]
terça-feira, 1 de julho de 2014
sábado, 21 de junho de 2014
terça-feira, 10 de junho de 2014
CÃO CELESTE # 1 a 5
Abel Neves, Alberto Pimenta, Alexandre Sarrazola, Ana Menezes,
Ana Isabel Soares, André Lemos, António Barahona, António Guerreiro,
Bárbara Assis Pacheco, Beatriz Hierro Lopes, Bruno Borges,
Cláudia Dias, Daniela Gomes, David Antunes, David Teles Pereira,
Diniz Conefrey, Diogo Vaz Pinto, Emanuel Jorge Botelho, Étienne Carjat,
Fabiano Calixto, Fernando Augusto, Gavarni/Estúdios &etc, Filipe Abranches,
Inês Dias, Isabel Baraona, Isabel Nogueira, Joana Matos Frias,
João Barrento, John Mateer, Jorge Roque,
José Ángel Cilleruelo, José Feitor, José Miguel Silva, Konoe Nobutada,
Luca Argel, Luís Filipe Parrado, Luís França, Luís Henriques,
Luis Manuel Gaspar, Luís Miguel Queirós, Manuel de Freitas,
Manuel Diogo, Maria da Conceição Caleiro, Maria João Worm,
Mariana Pinto dos Santos, Miguel de Carvalho, Pádua Fernandes,
Paulo da Costa Domingos, Renata Correia Botelho, Ricardo Castro, Ricardo Marques, Rosa Maria Martelo, Rui Baião, Rui Caeiro,
Rui Catalão, Rui Nunes, Rui Pires Cabral, Rui Silva,
Shitao, Silvina Rodrigues Lopes, Stéphane Lermais
e Vasco Graça Moura.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
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