sábado, 26 de janeiro de 2013

SE HÁ CÃES DE SONO...

Se há cães de sono que os meus pulsos rasgam
cães de dentes em lava,
se há algas nos teus olhos,
se escrevo no papel a baba dos teus beijos
nenhum vagar de sombra
nenhum campo natural do vivo olhar.

Se nos teus olhos vejo um vale,
se posso dizer casa, vento, nu,
nenhuma terra pousa sobre a terra,
sobre a mão que escreve
nem a sombra cai.
Que escrevo então, nudez sem corpo,
janela sobre um mar sem mar,
mão sem mão,
porque persigo um rastro sem faro, opaco e frio?
Que face ou região, círculo aberto,
página que no silêncio não ascende,
sopro que não sobe à boca, lua morta?
Se não te quero, imagem fútil,
luva de nada,
porque insisto no pálido círculo deste campo?

Se não há sol nem mãos que o arrebatem,
se árvores não vejo, nem destroços restam,
um tudo há-de nascer, ou já nasce de nada,
de cães de raiva insones, cães insones?
Oh, dormir sem nada mais, dormir apenas,
dormir para acordar
como se houvera um acordar de vez.


António Ramos Rosa, Respirar a sombra viva,
Lisboa: Plátano Editora, 1975

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