domingo, 31 de março de 2013

E a tua ferida, onde está?


Pergunto onde fica, em que lugar se oculta a ferida secreta para onde foge todo o homem à procura de refúgio se lhe tocam no orgulho, se lho ferem? Esta ferida - que fica assim transformada em foro íntimo - é que ele vai dilatar, vai preencher. Sabe encontrá-la, todo o homem, ao ponto de ele próprio ser a ferida, uma espécie de secreto e doloroso coração.
Se observarmos o homem ou a mulher que passam com olhar rápido e voraz - e também o cão, o pássaro, uma panela - a velocidade do olhar é que nos mostra, ela própria e com rigor máximo, que ambos são a ferida onde se escondem mal sentem o perigo. O quê? Já lá estão, já os conquistou - deu-lhes a sua forma - e para ela a solidão: lá estão inteiros no retesar de ombros em que passam a concentrar-se, com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca, e contra a qual nada podem nem querem, pois dela é que sabem esta solidão absoluta, incomunicável - este castelo da alma - para serem a própria solidão.


Jean Genet, O Funâmbulo,
trad. de Aníbal Fernandes,
Lisboa: Hiena Editora, 1984



Caravaggio, "A incredulidade de S. Tomé", 1601

sexta-feira, 29 de março de 2013

NOTA


A beleza da língua portuguesa provém das suas raízes (latina, grega e árabe), da dicção do povo e da invenção dos poetas, os três factores fundamentais que hoje, tal como hontem, pretensos reformadores assassinam e desfiguram.
Não se estranhe, portanto, neste livro, como, aliás, em todos os nossos livros, grafias diferentes da que, erradamente, se tornou quase comum. 
Guia-nos o critério biológico e estético de Teixeira de Pascoaes e, nele inspirado, algumas palavras, principais ou nucleares, escrevêmo-las com recurso à etymologia genética e tendo sempre em conta a sua conduta musical.
A ortografia é uma arte subtil (variável conforme o contexto), que complementa as artes da caligrafia e da leitura.


António Barahona, As Grandes Ondas,
Lisboa: Averno, 2013


“Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro.”
 
Entrevista com Giorgio Agamben

domingo, 24 de março de 2013

ALONE TOGETHER


à memória de Mário Alberto


Não sou saudosista, até porque sempre tive grandes dúvidas de que haja épocas dignas de serem vividas. Muito menos, acrescento, serei saudosista do que não vivi. E não conheci, infelizmente, o Mário Alberto. Gostava muito de me ter embebedado com ele, mas não calhou. Quando cheguei a Lisboa, já o Parque Mayer era uma ruína pouco aliciante, sem a corrosão ou a magia de outros tempos. Havia, é certo, algumas tabernas. Mas a própria Baixa foi definhando; as livrarias transformaram-se em bordéis, os cafés foram-se tornando irrespiráveis, incompatíveis, quase todos, com a minha obscena vontade de fumar. Resta o Estádio, na sua triste e azul teimosia. Nunca morri de amores pela Trindade, e a estátua pouco equestre do Pessoa matou-me de vez a Brasileira.

Não houve, repito, tempos melhores. Mas seria outra coisa, fatalmente preferível, encontrar num desses cafés o Manuel de Castro, o António José Forte, o Mário Cesariny, o Ernesto Sampaio - ou o Mário Alberto, claro. Hoje temos a pouca sorte de assistir à "criação ao vivo", como se a literatura fosse uma matança do porco, em directo. Temos, enfim, poetas muito mediáticos, gente deveras talentosa e os cagalhões ampliados da Joana Vasconcelos. Uma colorida tristeza, se virmos bem.

[..]


Manuel de Freitas, Cólofon,
Lisboa: Fahrenheit 451, 2012

CASIDA VII - DE LA ROSA


La rosa,
no buscaba la aurora:
casi eterna en su ramo,
buscaba otra cosa.


La rosa,
no buscaba ni ciencia ni sombra:
confín de carne y sueño,
buscaba otra cosa.


La rosa,
no buscaba la rosa:
inmóvil por el cielo
buscaba otra cosa.


Federico García Lorca
(na voz, claro, de Chavela Vargas)




[Ilustração de Luís Henriques
in Cão Celeste n.º2, Lisboa: Outubro de 2012]

sábado, 23 de março de 2013



Vittore Carpaccio, "Retrato de um cavaleiro", 1510
[Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid]

quarta-feira, 20 de março de 2013

HISTÓRIA DE CÃO

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação,
2ªed. revista, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005
 

sábado, 16 de março de 2013

O ANJO PERPLEXO

Nunca houve deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console;
nunca houve milagres ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem palavras mágicas, nem bálsamo eficaz
contra a dor que não enfraquece nunca;
e nem luz do outro lado das sombras,
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo da guarda perplexo que suporta
a mesma vida que cão que nós todos.


Amalia Bautista, Estou Ausente,
Lisboa: Averno, 2013

sexta-feira, 8 de março de 2013

Deus disse: "Em minha inquietação.
foi necessário pôr-te neste mundo
como se exibe uma ferida sem pudor.
Assim me condenei a ter-te pela trela,
a dar-te de comer três vezes cada dia,
a tirar-te os parasitas:
o sonho, o absoluto,
na precisão de crer-te meu igual.
Mas eu sou generoso:
ainda pela alva ao perfume das rosas
autorizo-te a dizer que foste tu
que me criaste.
Voltemos para casa, caro cão:
vai buscar-me o teu osso
e dorme diante da lareira
com o olhar molhado de ternura."


Alain Bosquet, O Tormento de Deus,
trad. Jorge Guimarães,
Lisboa: Quetzal Editores, 1992

Hoje, no ÍPSILON/PÚBLICO: