domingo, 18 de novembro de 2012

CÍRCULO

Temos de confiar nas pessoas, afirmava o meu pai, perante as objecções da minha mãe que eram muitas e fundamentadas, e eu criança pouco entendia, embora me sentisse inclinado a defender o meu pai contra as armas e razões da minha mãe, talvez porque na sua eloquência a minha mãe ganhasse clara vantagem e eu nutrisse simpatia pelos derrotados, ou simplesmente porque o gene se tivesse cumprido e eu na minha crença insensata repetisse o meu pai.
Quanto mais sofro por viver de coração aberto, é o que desta memória hoje se ilumina, mais me reconheço nas palavras do meu pai. Quanto mais envelheço, mais me aproximo do lugar que deixou vazio.
JORGE ROQUE
 
 
Raymond Cauchetier, 
'Lunch off-set with Jean-Paul Belmondo and dog (Peau De Banane)',
1963

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

DESENCANTAMENTO

No meu beco, há muitos pombos. Coloquei um recipiente com água, ao lado da porta, para eles beberem e se refrescarem. E atiro-lhes milho e pedacinhos de pão.
Isto, porque me lembro de que no meio de tantos pombos, pode muito bem estar aquele que Jesus esculpiu em barro e a que deu vida, com o seu sôpro.
 

*
 
 
Mas..., Já não há espaço para voar: disseram-me que é proibido alimentar os pombos.
E também é proibido tocar música na rua e aceitar moedas dos passeantes: os meus dois filhos mais pequenos (9 e 12 anos, alunos respectivamente dos Conservatórios de Música e Dansa) foram presos por dois polícias, como se fossem vis bandidos.
Já não há arte na vida, nem espaço para brincar e voar: NÃO É PROIBIDO MALTRATAR CRIANÇAS E DEVE-SE MATAR À FOME OS POMBOS DA CIDADE.



29.VIII.012
 
 
António Barahona
in Cão Celeste n.º 2, Lisboa, Outubro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

CÃO
LIRICA
ÇÃO


Parte da lírica
afago-a com as unhas
camadas submissas
focinho do poema.

Os óculos perseguem as pálidas palavras.

Mesmo as mãos
farejam o discurso
enquanto firo um toiro
num alfabeto loiro
num velho mecanismo.

(Um lápis diz para mim:
enxota a solidão)

Parte da lírica
agora é como um cão.

- Armando Silva Carvalho, Lírica Consumível, 1965
 
[Obrigada, Joana] 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

CINCO VOOS LÁ NO ALTO

Ainda é escuro.
O pássaro desconhecido pousa no seu ramo habitual.
O cãozinho da porta ao lado ladra surante o sono
interrogadoramente, apenas uma vez.
Talvez no seu sono, também, o pássaro se interrogue
uma ou duas vezes, inseguro.
Perguntas - se é isso que são -
respondidas directamente, simplesmente,
pelo próprio dia.

Manhã enorme, laboriosa, meticulosa;
uma luz cinzenta iluminando cada ramo despido,
cada rebento isolado, de um dos lados,
fazendo uma outra árvore de veios vítreos...
O pássaro ainda está lá. Parece bocejar.

O cãozinho preto corre no seu pátio.
A voz do dono eleva-se, ríspida:
"Devias ter vergonha!"
Que fez ele?
Pula de alegria;
Lança-se em círculos no meio das folhas caídas.

É óbvio que não tem vergonha nenhuma.
Ele e o pássaro sabem que tudo tem resposta,
tudo está programado,
sem necessidade de fazer uma nova pergunta.
- Ontem trazido para hoje tão facilmente!
(Um ontem que julgo quase impossível de se emergir.)


Elisabeth Bishop
[Trad. Maria de Lourdes Guimarães]
 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

DEBAIXO DO VULCÃO


alguém atirou um cão
morto às profundidades
Malcolm Lowry

I

Malcolm
Lowry: vivo
mal como Lowry,
bebo
bem como Mal-
colm, como
mal como
Malcolm
come:
álcool
Malcolm, al
coolm,
ó
alcolmalcolm,



II

ó frídida
tequila
no sopé do vulcão
por onde
o vulnerável cão
do espírito
ladra
e lavra
a essência
recôndita
do álcool:
conte-a
a bebidíssima
exigência


III

do meu
último copo,
sempre o último,
cante-a
o ex-extinto
vulcão
e por instinto
o vulnerável
cão,
ou plante-a
o próprio Lowry,
frágil,
entre lava
e neve:


IV

tépido mescal
para inventar
a mescaligrafia
gémea do som
ou da sombria
pauta musical
onde as notas florescem
em breves,
compactas corolas,
e hastes
que sobem, descem
esguiamente
os degraus
dum jardim,


V

enquanto
os índios passam
depressa
mas de pedra,
ficam
antepondo-se
ao norte
que fabrica
os países
com vidro,
com vinho, com visões
de videiras vitais
debaixo
do vulcão,


VI

ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inultilmente
dentro
da garganta
vazia,


VII

frígido mescal
como um galope
na floresta
de vinho e vidro,
filtro
litro a litro,
animal,
animais,
e mais e só
o dorido espírito
do álcool,
Malcolm,
entre neve
e lava:


VIII

os índios passam,
bebo, ficam
na sombria
pauta musical,
e o vulnerável cão
do amor
sossega pelo menos
um instante,
enquanto
os índios
sobem, descem
esguiamente
os degraus
das pirâmides.


Carlos de Oliveira in ‘Micropaisagem’,
Publicações Dom Quixote, Lx, 1968
 
[Via 50KG]

domingo, 21 de outubro de 2012

PRÉMIO NACIONAL DE POESIA DIÓGENES - 2011



A cerimónia informal de atribuição do Prémio, 
seguida de uma leitura de poemas de António Barahona por Diogo Dória, 
terá lugar no próximo sábado, dia 27 de Outubro, às 18h, 
na livraria Paralelo W

domingo, 14 de outubro de 2012

Hoje,
deixarei que sopre
um bravo vento
no coração. À janela

das coisas silenciosas,
os cães
hão-de ladrar-me

entre infância e morte
a poesia.
 

  José Carlos Soares, Do Lado de Fora,
Porto: 50 KG, 2012

segunda-feira, 8 de outubro de 2012