terça-feira, 5 de março de 2013


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Tenho uma recordação de mim em criança, a afagar um pormenor num romance. Recordar o momento é outra forma de restaurar a fé na ficção. A experiência foi hipnótica, com consequências para toda a vida, porque me mostrou como os mundos dos factos e da ficção podem interpenetrar-se. Eu tinha 13 anos, estava sozinho na biblioteca da escola, fascinado com The Go-Between, de L. P. Hartley. O herói, Leo, filho de uma família pobre, passa as férias de verão de 1900 com um colega, cuja família tem uma grande casa de campo. O cerne da acção é, claro, o papel de Leo como mensageiro numa relação amorosa ilícita. Mas o que me envolveu foi a onda de calor daquele mês de julho e o fascínio do rapazinho pelo termómetro da estufa, sempre à espera que o mercúrio atingisse os 100 graus. O exemplar dessa semana da revista satírica Punch chega à casa e, lá dentro, um desenho mostra "O Sr. Punch debaixo de uma sombrinha, franzindo o sobrolho, enquanto o Cão Toby, com a língua de fora, se arrasta atrás dele."

Lembro-me de pôr o livro de parte e, num movimento inspirado, atravessar a biblioteca até às prateleiras onde as velhas edições de Punch estavam guardadas, tirar o volume de 1900 e abri-lo no mês de julho. E lá estavam eles, o cão sobreaquecido, a sombrinha e o Sr. Punch a limpar a testa com um lenço! Era verdade. Senti-me cativado, deliciado, com o poder de algo simultaneamente imaginado e real. E por instantes senti uma tristeza inabitual, nostalgia por um mundo de que fora excluído. Por um momento, eu tinha sido Leo, a ver o que ele via, e era de novo 1962 e eu estava na escola interna, sem onda de calor, apenas com este pequeno vestígio de uma revista que amarelecia.

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Ian McEwan, "Apostasia Ficcional"
(trad. de António Costa Santos)
in Atual/Expresso, 2 de Março de 2013

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